Por que países comercializam bens e serviços entre si? O comércio pode surgir tanto da vontade de um país de adquirir um bem que ele não produz – seja por não ter a tecnologia, seja por ser uma commodity indisponível em seu território – ou por ser mais barato adquirir o produto de outra economia. Segundo a teoria econômica da Vantagem Comparativa, introduzida pelo economista britânico David Ricardo no início do século XIX, os países podem se concentrar na produção de bens nos quais são mais eficientes, e adquirir os demais produtos de outros países. Desta forma, o comércio internacional possibilita a expansão da produção global e eleva o bem-estar agregado [1] . Embora esta ideia seja simplificada e ignore pontos importantes da realidade, em particular as questões políticas como setores de interesse estratégico, na prática ela guiou boa parte do desenvolvimento econômico das últimas décadas.
Ainda que as nações já comercializem entre si há séculos, o fenômeno da integração das cadeias de produção é bem mais recente, tendo começado a partir de meados da década de 1980. No lugar de bens finais, uma parte crescente do comércio internacional passou a ser concentrada em bens intermediários, com um produto final tendo valor agregado ao longo da cadeia em vários países distintos. Na prática, esta expansão tornou a fronteira de produção mais global, com os fatores de produção sendo espalhados pelo mundo e não mais restritos a um determinado território; por exemplo, a mão-de-obra disponível para produzir um bem nos EUA deixou de ser apenas a força de trabalho americana, com trabalhadores de outras nacionalidades adicionando valor ao longo da cadeia produtiva.
Em tempos de questionamento e ameaças ao livre comércio e dúvidas a respeito dos benefícios da globalização surgindo em partes do mundo, vale revisitar a evolução da globalização ao longo das últimas décadas.
Seguindo a linha de raciocínio de Baldwin, autor do livro “The Great Convergence: Information Technology and the New Globalization”, podemos dividir o processo de globalização do comércio em etapas. Em um primeiro momento, o desenvolvimento dos sistemas de transporte após a revolução industrial no século XIX possibilitou a separação geográfica da produção e do consumo, que antes tinham que ocorrer mais próximos, tendo em vista os elevados custos logísticos envolvidos. Esta evolução permitiu que os centros de produção começassem a produzir em grande escala, tornando-se bastante rentáveis e muito mais competitivos do que centros produtivos que operassem em menor escala. Durante este período, entretanto, o crescimento foi concentrado nas economias desenvolvidas do hemisfério norte, aprofundando ainda mais a disparidade de renda em relação aos países do hemisfério sul. Ou seja, o primeiro estágio da globalização promoveu na verdade uma concentração ainda maior da produção e da renda.
Apenas na segunda etapa, iniciada em meados de 1980, é que a globalização resultou em maior diversidade geográfica na produção. Como isto se tornou possível? A melhora nos sistemas de telecomunicações, computação e o desenvolvimento de softwares possibilitou uma coordenação da produção sem necessidade de proximidade física. Mas o que realmente incentivou a realocação geográfica da produção, que saiu das economias desenvolvidas do norte em direção aos países emergentes, foi a grande disparidade salarial existente: o trabalho abundante e mais barato nos emergentes incentivou a migração de estágios da cadeia de produção mais intensivos em mão-de-obra. Esta diferença era tão marcante que compensava inclusive outros custos envolvidos, como o frete. Ou seja, segundo esta visão, o boom de tecnologia – que conforme vimos na nossa carta número 24 resultou no período de ouro da produtividade – foi a evolução chave para a globalização das cadeias produtivas. Embora esta diferença de custo de mão-de-obra tenha se reduzido ao longo do tempo - segundo estimativa da Oxford Economics em 2017 o custo por hora trabalhada em manufatura nos EUA ainda era cerca de 6 vezes superior ao visto na China. Outros fatores como incentivos oferecidos pelos governos, tarifas mais baixas, ou até mesmo crédito subsidiado local também atuaram como atrativos.
Retornando ao conceito de Vantagem Comparativa que vimos na introdução, pode-se argumentar que esta segunda etapa alterou a maneira que devemos pensar acerca dessa questão: a vantagem deve deixar de ser compreendida como restrita a um país e passa a ser vista em termos de uma cadeia de valor global (Global Value Chain). Um exemplo concreto do livro “Global Supply Chains: Evaluating Regions on an Epic Framework” ajuda a entender esta transformação [2]. Um produtor de máquinas agrícolas localizado no Vietnã possuía, antes da segunda etapa da globalização, a mão-de-obra adequada, mas faltava a capacidade na gerência. Ao fechar um contrato com a montadora japonesa Honda nos anos 1990, recebera engenheiros da companhia que ajudaram a montar uma linha de produção eficiente, no estilo japonês. Ao longo do tempo, a empresa começou a receber encomendas de partes e peças de outras empresas no Japão, algo antes impensável. Ou seja, antes da parceria com a Honda, a vantagem comparativa da empresa vietnamita tinha que ser avaliada considerando apenas os fatores disponíveis domesticamente (trabalho e tecnologia), enquanto posteriormente os fatores disponíveis passaram a ser supranacionais: mão-de- obra local, mas com o uso de tecnologia japonesa.
Neste caso, a vantagem comparativa que o Vietnã tinha na abundância da mão-de-obra barata foi combinada com a vantagem japonesa no know-how. O conceito de vantagem comparativa passou, portanto, a ser referente a uma cadeia de valor global, e não um país; a variável relevante passa a ser a vantagem comparativa da cadeia global da empresa X em relação à empresa Y.
Evolução de economias emergentes
Após décadas de protecionismo e políticas de desenvolvimento industrial baseadas na substituição de importações, os anos 1990 foram marcados por uma guinada na direção de maior abertura comercial em algumas economias emergentes (em particular no sudeste asiático), acompanhada de integração às cadeias globais de produção. Ao mesmo tempo, tarifas foram reduzidas e tratados comerciais foram firmados. Segundo dados do Banco Mundial, podemos ver uma clara tendência de redução de tarifas iniciada nos anos 1990, conforme o gráfico abaixo:
Esta integração, por sua vez, possibilitou um crescimento da indústria destes países que seria inviável isoladamente. A alternativa anterior era desenvolver do início um centro industrial, uma tarefa muito mais árdua e lenta, e que teria como pré-requisito o desenvolvimento de tecnologia. Além disso, a integração veio acompanhada de aceleração nos investimentos estrangeiros diretos, com impactos positivos para a produtividade, ilustrado pelo gráfico a seguir.
Alguns dados ajudam a exemplificar a transformação pela qual o mundo passou a partir da intensificação da globalização das cadeias de produção. Por exemplo, do início da década de 1980 até 2016 o percentual da atividade industrial global associada a economias emergentes subiu 21,4 pontos, alcançando 40,9%. [3]
Ao mesmo tempo, este boom na atividade industrial das economias em desenvolvimento foi acompanhado pelo aumento expressivo do crescimento, que se refletiu em rápida elevação da participação destas economias no total da renda global.
Entretanto, o movimento não foi uniforme. Enquanto algumas economias emergentes se integraram mais diretamente às cadeias industriais globais, outras permaneceram mais concentradas na exportação de commodities. Ao passo que a maioria das economias do sudeste asiático é um exemplo do primeiro caso, o Brasil é do segundo.
A diferença no grau de abertura das economias emergentes fica mais evidente quando comparamos o tamanho da corrente de comércio de um país, mensurada pela soma das exportações e importações como proporção do PIB. Neste caso, fica claro como as economias do sudeste asiático são bastante abertas, assim como economias emergentes que se localizam ao redor de outros blocos (Polônia e República Tcheca são exemplos no bloco europeu, enquanto México é um exemplo nos EUA).
Ainda segundo o autor Baldwin, apenas olhar o grau de abertura das economias e sua evolução ao longo do tempo diz pouco a respeito da integração das cadeias de produção. Isto porque boa parte das importações de uma economia é na verdade composta de bens intermediários utilizados para a exportação, e esta interseção é uma métrica mais adequada para mensurar a integração da cadeia. Por exemplo, segundo estimativas do autor, cerca de 65% do valor das exportações mexicanas consistem de produtos intermediários importados, em particular dos EUA (37%). O mesmo pode ser visto, embora em menor grau, na Polônia, onde 19% das exportações são intermediários oriundos de parceiros comerciais próximos. O que se observa é uma concentração das cadeias de produção em regiões específicas, com Coréia do Sul e Indonésia sendo exemplos na Ásia.
Impacto sobre preço de bens
Um efeito direto da globalização, com transferência de estágios da produção para localidades com mão- de-obra barata abundante, é conter a alta de preços dos bens. Já os serviços, não-transacionáveis e que têm que ser produzidos internamente, são mais diretamente associados aos custos internos da mão- de-obra. Em países de renda per capita mais elevada, e, consequentemente, com custos trabalhistas mais altos, a globalização produziu uma disparidade no comportamento dos preços de bens e serviços. Por exemplo, nos EUA, a diferença entre a inflação de serviços e bens durante a década de 1990 foi de 29 p.p. (pontos percentuais), ou seja, o preço dos serviços subiu muito mais em termos relativos [4]. Se tomarmos os dados até o final do ano passado, a discrepância é ainda mais marcante: 115 p.p.. É inegável que outros fatores também influenciaram esta dinâmica, como inovações no setor industrial e o comportamento do dólar americano, mas este fenômeno foi observado em praticamente todas as economias.
Além disso, outra discussão relacionada a este fato é se houve também uma globalização da inflação. Com a maior integração produtiva, talvez a métrica mais relevante para mensurar pressões inflacionárias em um determinado país não seja mais local, mas sim global. Em outras palavras, a noção de hiato do produto deveria ser vista de maneira global e não local [5]. Ou seja, a famigerada curva de Phillips [6] relacionando desemprego e inflação seria global. Embora esta discussão não seja nova e existam opiniões distintas a respeito da sua validade, encontram-se evidências empíricas sugerindo que a integração das cadeias de produção global reduziu a sensibilidade da inflação doméstica de um país à pressão nos fatores de produção locais e elevou o efeito da parcela global [7].
Caso China
Talvez o exemplo mais claro dos efeitos da globalização seja a ascensão da economia chinesa. Desde o ingresso na Organização Mundial do Comércio em novembro de 2001, cuja condição imposta foi uma abertura da economia local que forçou a integração e modernização do sistema produtivo chinês, o crescimento do país foi impressionante: o PIB per capita se expandiu em média cerca de 10% ao ano nos dez anos seguintes.
Ao longo dos anos houve um aumento do investimento estrangeiro direto destinado à instalação de fábricas e linhas de montagem, se beneficiando da mão-de-obra barata e abundante. Segundo dados de um estudo conjunto do Rhodium Group com o National Committee, empresas americanas investiram US$ 225 bilhões na China de 1990-2015, sendo 71% deste montante em investimentos greenfield (construção de novas linhas de produção).
O país também se tornou líder na produção de vários produtos, dominando alguns nichos do mercado de exportação de manufaturados. Por exemplo, na categoria Brinquedos e Artigos Esportivos a China é responsável por 82% do total importado pelos EUA, enquanto para Calçados este patamar é de 63%. Na categoria de Equipamentos Eletrônicos, uma das mais relevantes da pauta de importações americana, a China corresponde a 41%. Não coincidentemente, alguns destes setores foram os que receberam maior investimento direto de empresas americanas, evidenciando a globalização das cadeias produtivas.
Conclusão
Conforme vimos, enxergar o fenômeno da globalização apenas pela ótica da intensificação do comércio entre os países ignora boa parte das transformações ocorridas ao longo das últimas décadas. Não só a maneira de produzir foi alterada, com diversificação geográfica das etapas de produção, como a forma de combinar fatores de produção também se alterou, mudando, consequentemente, o conceito de vantagem comparativa.
Além disso, a globalização também promoveu profundas transformações na concentração geográfica da renda, revertendo a praticamente ininterrupta trajetória de elevação da participação dos países mais desenvolvidos no PIB global. Embora permaneçam discrepâncias relevantes entre o nível de renda per capita entre desenvolvidos e emergentes, países que se integram às cadeias globais de produção vêm conseguindo crescer a taxas mais elevadas, fechando ao longo do tempo este gap.
Referências:
[1] Segundo a teoria, mesmo no caso em que um país consiga produzir dois bens (X e Y) de maneira mais eficiente que outro país, mesmo assim seria ótimo se concentrar na produção do bem em que ele é relativamente mais eficiente e importar o outro bem. Desta forma, o consumo total seria maximizado.
[2] Global Supply Chains: Evaluating Regions on an Epic Framework - Economy, Politics, Infrastructure, and Competence. Mandyam M. Srinivasan, Theodore P. Stank, Philippe-Pierre Dornier
[3] Considerando como economias emergentes o conjunto composto por China, Coréia do Sul, Indonésia, Índia, Turquia, Polônia, Brasil e México. As economias do G7 são compostas por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido.
[4] Utilizamos aqui os índices de Core Goods (exclui energia e alimentos) e Core Services (excluem energia).
[5] Hiato do produto é a diferença entre o nível de atividade e aquele considerado como potencial. Ou seja, hiato positivo significaria atividade acima do sustentável no médio/longo prazo, indicando pressão nos fatores de produção (taxa de desemprego muito baixa ou utilização de capacidade instalada muito elevada). 6- A curva de Phillips mensura a relação existente entre a taxa de desemprego e a inflação. Quanto menor a taxa de desemprego, maior a pressão sobre os salários, e consequentemente a inflação. Esta relação empírica se enfraqueceu ao longo dos últimos anos na maioria das economias. 7- Fonte: Federal Reserve Bank of Dallas, Globalization and Monetary Policy Institute