Os “impérios” grego, romano, britânico e norte-americano mostram como, ao longo da história, a dominância econômica esteve associada a elementos geopolíticos. Durante o século XIX, a Inglaterra foi um império global, com forte movimento colonizador. Após a segunda grande guerra, os EUA e a URSS disputaram áreas de influência criando um mundo bi-polar até a derrocada soviética e queda do muro de Berlim.
Hoje, os EUA exercem um império global muito mais evidente do ponto de vista econômico do que a Inglaterra o fez no passado. Porém, do ponto de vista político e militar, sua atuação é inteiramente diferente pois ele jamais manteve colônias. O que não significa que não tenha forte influência político-militar em todo o mundo. Ao contrário, na Ásia, por exemplo, desde a segunda guerra, as relações geopolíticas entre os países são mediadas pelos EUA.
Com o espetacular crescimento das economias asiáticas - primeiro Japão, depois os “tigres” e agora a China - a Pax Americana passa a conviver com dois blocos de poder, a “velha Europa” e a “nova Ásia”. A emergência asiática trás novos temas para o quebra-cabeça mundial na medida em que a expansão chinesa realça sua importância nas relações econômicas entre Ásia e EUA e nos conflitos político-militares dentro do bloco asiático.
Ásia: Um pouco de contexto histórico
In ways, early Meiji Japan was like China in the 1980s and 1990s: Economic reforms were not matched by political ones… Japan in the 1870s had the beginnings of a modern market economy … but free enterprise was never free from state interference. (Ian Buruma, Inventing Japan, The Modern Library, 2003).
Até o século XIX, a China se via como o centro do mundo e o Japão era um de seus satélites, dominado pelas tradições confuncianas. A restauração Meiji no Japão no final do século, período de abertura para o Ocidente e iluminismo foi marcada pela sua vitória na guerra contra a China em 1895. Mas a abertura econômica do Japão era limitada por um forte conteúdo intervencionista, e alimentada por um espírito nacionalista e bélico. A vitória sobre a China lançou o movimento colonizador. A locomotiva japonesa foi adiante, invadindo a Manchúria em 1905 e a Coréia em 1910. A invasão da China em 1937, às vésperas da Segunda Grande Guerra, foi marcada por violência e atrocidades que até hoje alimentam ressentimentos na região. O embargo norte-americano de combustíveis e materiais para montagem de aviões terminou levando ao ataque de Pearl Harbor.
A guerra civil chinesa que levou à vitória de Mao Zedong em 1949 é um rescaldo do conflito geopolítico entre Japão e China, e a fuga de Chiang Kai-Shek para Taiwan tornou-se um fator crítico na região. A China se fechou ainda mais, o autoritarismo e nacionalismo atingiram seu ápice com o governo autocrático que prevalece até os dias de hoje.
O Japão humilhado pela segunda guerra mundial, teve sua Constituição escrita pelos vencedores que, entretanto, optaram por preservar a vida do imperador Hirohito que viveu até o início dos anos 90. No lugar de se fechar, o Japão retomou sua saga de abertura com o Leste. Já em 1964, Tóquio recebeu os jogos olímpicos em uma demonstração de que queria voltar a se integrar ao mundo ocidental. Nos anos 80 os EUA temiam pela superioridade dos produtos made in Japan. Na década de 90, o modelo japonês, uma mistura de capitalismo com arranjos extra-mercado (entre governo e setor privado, entre empresas e entre essas e seus trabalhadores) entrou em colapso. O crony capitalism (ou “capitalismo entre camaradas”) da segunda maior economia do mundo é um exemplo da dificuldade dos asiáticos de modo geral com o liberalismo e em adotar por inteiro a economia de mercado.
Na China, a opção foi pela economia planejada até 1978 quando Deng Xiaoping, com a morte de Mao e o declínio da China, optou pela economia de mercado até conseguir, há alguns anos, ser aceita pela Organização Mundial do Comércio. Tem-se então uma ditadura comandando uma longa, difícil e, até agora, bem-sucedida reforma econômica.
A simbiose das economias americana e asiática
Nesse meio tempo, as empresas americanas aos poucos foram descobrindo na Ásia - Cingapura, Coréia do Sul, Taiwan- um terreno fértil para se instalar. Nesses países, graças à escassez de recursos naturais e a uma cultura de parcimônia e disciplina, o investimento em educação tornou a relação entre qualidade e custo do trabalho muito atraente para as empresas norte-americanas. A história da indústria de hardwares, por exemplo, está escrita no eixo Silicon Valley - Cingapura. História semelhante se repete para a indústria de eletro-eletrônicos asiática que praticamente eliminou do mapa as empresas americanas e européias. A Ásia se tornou o fornecedor global de bens manufaturados do mundo. A tal ponto que hoje, um terço do fluxo comercial e metade do déficit comercial dos EUA é com a Ásia.
A China, a partir dos anos 80, passa a fazer parte desse network, sendo hoje a fronteira de investimentos ocidentais na Ásia. E ao mesmo tempo, a integração entre os países asiáticos se fortalece: nos últimos anos o Japão tem sido o maior parceiro comercial da China, em uma troca entre bens de consumo chineses e equipamentos japoneses.
A parcimônia do consumidor e dos governos asiáticos faz com que a taxa de poupança (renda não consumida) daqueles países seja a mais alta do mundo. Por sua vez, a disciplina combinada ao investimento em educação e tecnologia torna essas economias muito produtivas. Ou seja, são povos que produzem muito mais do que consomem, e se especializaram em fornecer para mercados estrangeiros e reinvestir os lucros. Aí está sua força e sua fraqueza. Sua força porque independem da poupança externa e são muito produtivos - chave para crescimento econômico. Fraqueza porque são vulneráveis ao crescimento da demanda dos outros e não são capazes de sustentar o crescimento com base na demanda doméstica.
Já os países anglo-saxões na última década e meia passaram a se comportar como o outro lado da moeda: o crescimento do consumo supera em muito a expansão da capacidade de produzir. Os EUA são os campeões: a taxa de poupança das famílias americanas caiu de 8 a 10% da renda há quinze anos para menos de 1% hoje. E se as famílias consomem muito, os governos também! Com exceção do período Clinton, os EUA têm déficit fiscal nas últimas décadas ao redor de 2 a 3% do PIB, e hoje está na casa dos 4%.
O resultado desses modelos simétricos é uma troca muito interessante: a Ásia exporta seus excedentes para os EUA a preços muito competitivos, e com isso mantém seus trabalhadores empregados. Esse é o caso da China moderna, que vem crescendo com investimentos estrangeiros, e é muito voltada para o mercado externo. E os EUA, por consumirem mais do que produzem, têm um déficit externo que é financiado pelos países exportadores. De fato, nos últimos anos, os bancos centrais asiáticos têm entesourado os superávits comerciais de seus países em dólares e, como dólares não rendem juros, então compram títulos públicos do Tesouro dos EUA. Metade dos títulos públicos americanos está em mãos de bancos centrais asiáticos.
Essa compra desenfreada de títulos americanos ajuda a manter as taxas de juros baixas nos EUA e, com isso, o consumo em alta e a economia aquecida. Por sua vez, para evitar uma recessão mais forte depois do estouro da bolha da NASDAQ, o Federal Reserve dos EUA adotou uma política agressiva de juros baixos. Resultado, a economia americana se recuperou rapidamente, cresceu muito nos últimos anos, trouxe a reboque o resto do mundo, inclusive seus antigos fornecedores de bens manufaturados, Japão, Coréia do Sul, Taiwan e, agora, a China. Esses países, a China especialmente, são grandes importadores de matérias primas e energia. O crescimento global dos últimos três anos levou a um boom das commodities, inclusive do petróleo, que agora começa a minar o poder de compra dos consumidores em todo o mundo.
O ajuste ao boom das commodities pode ser suave: à medida em que o consumo cai na esteira de preços mais altos e da elevação dos juros nos EUA, a economia do mundo passa a crescer a taxas mais baixas que nos últimos anos, mas ainda assim continua avançando. Quão suave será esse ajuste é uma discussão que concentra os economistas nesses dias.
A China como possível potência emergente e sua relação com os EUA.
Em outras paragens, os cientistas políticos já há alguns anos vêm se perguntando se e quando a China se tornará uma potência econômica e militar, e até que ponto tem ambições geopolíticas. A China ainda é um país muito pobre, mas pelo seu tamanho e sua taxa de crescimento nos últimos vinte anos, já figura entre os grandes. Do ponto de vista militar, seus gastos chegam a um sexto dos americanos. Não chega a ser uma potência militar, mas pode fazer muito barulho no tênue equilíbrio regional asiático, onde os EUA, em acordo tácito com o Japão, têm o papel de guardião da paz. Até hoje, as bases militares americanas instaladas no Japão são financiadas pelo contribuinte local. Se a China vai se transformar em nova estrela econômica e militar em mais vinte ou trinta anos é, sem dúvida, uma questão que já ocupa os estrategistas políticos e militares nos EUA. A interrogação mais imediata é saber se nos próximos anos o dominó econômico e político que vem se montando entre o Ocidente e o Oriente vai se manter de pé não obstante os desequilíbrios que vão deixando pelo caminho (déficit externo dos EUA, crescimento de ativos americanos em mãos de estrangeiros, explosão de reservas na China, boom de commodities, etc.).
O consumidor americano é um player importante nesse jogo. Sua riqueza (medida pelo valor de ações de empresas e residências) como proporção da renda vem crescendo nos últimos quinze anos e alimentando sua capacidade de consumir. Se os preços de ações ou casas cair, por desconfiança de investidores profissionais de que não se sustentam a não ser com taxas de juros reais muito baixas ou negativas, é possível que o consumidor americano rateie. Uma recessão americana mais prolongada retira das economias asiáticas a força de suas vendas, reduzindo a geração de empregos. Uma decisão dos bancos centrais asiáticos de mudar o mix de suas reservas, comprando mais euros e menos dólares, seria um estopim para a elevação dos juros nos EUA.
A própria economia chinesa tem debilidades estruturais. Sem dúvida, a abertura para o mundo e a elevada taxa de poupança são pilares importantes. Mas, a parte velha da economia - empresas e bancos estatais - cabides de empregos com baixa produtividade, e uma eventual frustração do crescimento esperado do mercado externo, são pontos de debilidade, que podem ter maus resultados: seja na forma de prejuízos para as empresas não estatais, seja na forma de quebras no caso dos bancos estatais, seja na forma de crescimento acelerado da dívida pública para salvar empresas e bancos. A história de economias que crescem muito rápido à custa de crédito e investimentos estatais não é nova, e, em geral, não é bonita.
A China, não obstante o sucesso da parte moderna da sua economia e da determinação reformista de seus líderes, é um país em que não prevalece o estado de direito e aonde a lei, os contratos e o respeito à propriedade privada dependem da fé na continuidade do atual regime. E o principal incentivo para a continuidade do espírito reformista é a relação de troca com os mercados externos o que, por sua vez, dá o tom de sua fragilidade.
A estabilidade dos regimes políticos autocráticos é especialmente vulnerável ao desempenho da economia. E quando essa vai mal, apelam para o nacionalismo e o militarismo, que são parte da cultura asiática. Como nota Bill Emmott, editor do The Economist em seu livro 20:21 Vision (Farrar, Straus and Giroux, 2003), “o maior risco seria que os conflitos internos de poder levassem a um aumento do nacionalismo chinês, produzindo ações agressivas contra seus vizinhos e, particularmente, contra Taiwan”.
Aliás, dois episódios recentes ilustram a força dessas tendências latentes, mesmo sem sinais de fraqueza da economia e do regime na China. O primeiro foi o decreto anti-separatista do governo chinês autorizando o uso da força contra movimentos de secessão de Taiwan. Esse decreto foi suficiente para a União Européia manter o embargo de armas para a China, prestes de ser suspenso. O segundo são os protestos populares na China contra atrocidades militares do Japão, seu principal parceiro comercial. Sinal da psique chinesa, ainda ressentida e humilhada mesmo quando o país vai tão bem.
Por sua vez, nos EUA, por mais fortes que sejam os laços que unem o consumidor americano ao trabalhador chinês, há um forte movimento no Congresso para impor sansões protecionistas contra a invasão de produtos chineses. Aqui, o conflito está entre interesses setoriais nos EUA, de um lado e, de outro, os interesses de consumidores que usufruem das importações baratas e de empresas americanas que há décadas estão instaladas na Ásia. A escalada protecionista dos EUA é outra fonte de instabilidade.
O fato é que, em um certo sentido, EUA e Ásia formam um bloco econômico, o que não significa que não haja interesses em jogo e que, se o equilíbrio for desfeito, que não sejam liberadas forças ainda mais desestabilizadoras. No momento, todos ganham com a simbiose entre as economias americana e asiática.