Sistema monetário internacional
Desde o final do século XIX o mundo passou por quatro padrões monetários internacionais. Até a primeira Guerra Mundial, as moedas tinham um valor fixado em quantidades de ouro e as taxas de câmbio entre as moedas eram praticamente fixas. A libra, com valor atrelado ao ouro, era o padrão monetário internacional durante o chamado período do “padrão-ouro”. Em 1913, o Reino Unido detinha 16% do comércio mundial e 14% do PIB.
Entre as duas guerras mundiais, com as dificuldades de algumas economias com os gastos militares e reparações de guerra, algumas moedas mudaram seu valor em relação ao ouro (a própria libra esterlina) ou em relação à libra. Esse foi um período de contração dos fluxos de comércio e finanças internacionais e início de práticas protecionistas. Depois da segunda Guerra Mundial, com o crescimento do fluxo de capitais dos EUA para a Europa, Ásia e América Latina, o sistema de Bretton Woods, que resultou da reunião internacional que deu origem ao FMI e ao Banco Mundial, restabeleceu o regime de câmbio fixo desta vez com base no dólar que tinha conversibilidade em ouro a um preço fixo.
Em 1971, o crescimento do déficit comercial dos EUA e a perda de market share de empresas americanas forçaram o governo Nixon a abandonar a conversibilidade entre ouro e dólar. A partir deste momento, gradualmente as taxas de câmbio passaram a flutuar. Esse sistema, de câmbio flutuante, se mantém até hoje. É verdade que o grau de flutuação das moedas varia muito entre os países. O Euro é uma moeda livre, totalmente flutuante. O Yen e outras moedas asiáticas sofrem intervenção dos respectivos bancos centrais e têm um sistema de flutuação suja. Hong Kong mantem câmbio fixo em relação ao dólar, e o yuan, moeda chinesa, também está atrelado ao dólar há anos. Os países emergentes em geral também mantêm um sistema de flutuação administrada com algum peg ao dólar.
Disseminação do uso e reserva de valor
Tanto no contexto de uma economia nacional quanto no âmbito internacional, uma moeda, para exercer suas funções básicas (meio de pagamento, unidade de medida e reserva de valor), depende essencialmente da estabilidade de seu poder de compra.
Em um país, a moeda corrente serve como reserva de valor doméstico se o seu poder de compra doméstico for estável, ou seja, se a inflação for baixa. Em países com inflação elevada, a moeda local deixa de ser usada como unidade de conta e reserva de valor, sendo substituída por uma moeda conversível (dolarização na Argentina na década de 90) ou uma moeda indexada (“ortnização” no Brasil na década de 80).
As moedas de países com histórico de inflação têm conversibilidade limitada, isto é, não têm liquidez fora do país, não são usadas como unidade de conta ou meio de pagamento internacional e, mais importante, não servem como instrumento de crédito ou denominação de ativos financeiros fora do país. Governo ou empresas de países com moedas instáveis pagam um elevado prêmio para emitir dívidas no mercado internacional mesmo em moeda forte devido à inconversibilidade da moeda local.
Para ser reserva de valor internacional, há outras condições além da baixa inflação doméstica. A elevada disseminação do uso da moeda para transações comerciais e financeiras no âmbito internacional é um requisito para assumir o status de reserva de valor. Moedas como a libra (entre o final do século XIX e o entre-guerras) e o dólar (desde a segunda guerra mundial) têm em comum o fato das economias inglesa e americana serem grandes, terem significativa participação no comércio internacional e contarem com mercados financeiros abertos e eficientes.
Quanto maior o uso de uma moeda como meio de pagamento e unidade de conta (invoicing), maiores as chances de se tornarem moedas internacionais. Isso porque quanto maior o uso de uma moeda como meio de pagamento e unidade de conta, maiores as vantagens em usá-la pela economia em números de transações e facilidade para cotar preços. O uso de um número pequeno de moedas internacionais produz ganhos de escala e esse é um motivo básico para o número de moedas de curso internacional ser pequeno.
As principais moedas internacionais (Dólar, Euro e Yen) servem também como instrumentos de reserva de valor dos Bancos Centrais e estabilização monetária através de intervenção nos mercados domésticos de câmbio (Tabela 2).
Sistema cambial e reserva de valor
Além da disseminação do uso de uma moeda, o mais importante fator para definir o papel de uma moeda como reserva de valor internacional é o sistema cambial predominante. Se, no âmbito doméstico, a estabilidade da moeda é essencial, no campo internacional, a estabilidade das taxas de câmbio tem papel destacado. Em um sistema internacional de câmbio fixo como nos períodos de padrão-ouro e de Bretton Woods, o valor relativo das moedas era estável e, portanto, não havia risco cambial nas operações financeiras. Por exemplo, um investidor francês com ativos denominados em dólar não corria risco de sofrer perdas em franco devido a variações na taxa de câmbio entre as moedas.
Em princípio, em um sistema de câmbio flutuante, como o preço de bens e ativos em diferentes moedas mudam de acordo com variações nas taxas de câmbio, há uma tendência à diversificação das carteiras e, portanto, ao aparecimento de mais de uma moeda internacional. Esse é o ponto destacado por Paul Krugman: “As a store of value ... the dollar has one disadvantage prewar sterling did not have. This is the uncertainty caused by floating exchange rates. Uncertain exchange rates push wealth holders toward diversification, opposing the forces encouraging convergence on a single currency”. (Paul Krugman, “The international role of the dollar”, em Currency and Crises, MIT Press, 1999).
A escolha da reserva de valor
Em um sistema de câmbio flutuante como o atual, o valor de carteiras internacionais pode variar por dois motivos:
1. O valor de uma carteira de ativos denominados em dólar (ações cotadas em Wall Street e títulos do Tesouro americano, por exemplo) pode sofrer forte variação de seu valor em euro, real, yen, etc. Por exemplo, o valor dessa carteira em euro cai com a depreciação do dólar.
2. O valor em dólar de uma carteira diversificada em moedas tende a ser muito volátil. Quando a taxa de câmbio entre dólar e euro foi de 1,20 para 1,35, uma carteira meio a meio em cada uma das duas moedas teria um ganho de 6,3% do seu valor em dólar. A volta do câmbio de 1,35 para 1,30, há uma perda de 2%.
Esses dois casos ilustram como é importante a escolha da moeda de referência. Deixando de lado considerações sobre o preço de ativos (bolsa, renda fixa, etc.), inclusive entre países, e concentrando a análise apenas na diversificação entre moedas, para um investidor americano cuja cesta de gastos está 100% concentrada nos EUA, não faz sentido ter euro ou yen em sua carteira. O mesmo vale para investidores em qualquer parte do mundo cuja cesta de gastos está denominada em uma única moeda desde que a moeda doméstica se mostre uma boa reserva de valor, isto é, tenha valor estável.
A diversificação passa a fazer sentido quando a composição da cesta de gastos do investidor inclui bens e serviços estrangeiros o que sempre é verdade em alguma medida já que as economias estão cada vez mais abertas. A forma de evitar a oscilação do valor de compra do patrimônio é segmentando-o de acordo com a cesta de consumo. Mas, como em geral essa cesta é muito concentrada, existe um natural home bias na alocação de recursos. Um fundo de pensão europeu, cujos participantes têm a maior parte de sua cesta de consumo na Europa deve ser muito moderado na diversificação de moedas.
Se a cesta de consumo estivesse uniformemente distribuída entre os n países do mundo, na ausência de uma forte razão para a mudança das taxas de câmbio em uma direção ou outra, o ideal seria ter o patrimônio distribuído igualmente entre as n moedas. O mesmo vale para o futuro. A alocação dos recursos de uma família deve buscar uma diversificação que leve em conta as alternativas da sua cesta de gastos, o que evidentemente é um exercício muito difícil quanto mais longínquo o futuro.
Deixando de lado os argumentos associados à composição da cesta de gasto, a diversificação passa a depender essencialmente da moeda de referência, e da volatilidade e (algumas vezes imprevisível) tendência das taxas de câmbio.
Pela sua estabilidade e disseminação como meio de pagamento e unidade de conta, o dólar é hoje a principal referência para reserva de valor. Enquanto esse for o padrão, o desempenho das carteiras tende a ser avaliado segundo sua rentabilidade em dólar. Nesse sentido, a diversificação da carteira em outras moedas passa a ser parte de uma estratégia de maximização do valor em dólares da carteira. O ideal nesse caso seria ficar long em moedas cuja expectativa é de apreciação em relação ao dólar, e vice-versa. Mas, neste caso, essa escolha passa a ser uma estratégia ativa de trading e não uma estratégia de diversificação passiva. Dada a enorme volatilidade das moedas, tanto no curto quanto no longo prazo, esta diversificação ativa implica elevada volatilidade para a carteira.
O dólar como a referência
Nos últimos anos e meses, com o contínuo crescimento do déficit externo dos EUA, vem aumentando a expectativa de depreciação do dólar frente a outras moedas. E, efetivamente, tem havido uma considerável depreciação frente ao euro e um conjunto de outras moedas, inclusive o real.
O debate recente tem trazido à baila a discussão sobre a perda do status de moeda de referência do dólar no contexto internacional. O argumento básico para isso seria a continuidade da depreciação do dólar frente a outras moedas, o que efetivamente pode acontecer. Mas deve-se ter em mente que essa não é a primeira vez que o dólar perde valor.
Desde o fim do sistema de câmbio fixo de Bretton Woods, em 1971, essa é a terceira vez que o dólar se deprecia frente às moedas de seus parceiros comerciais. O gráfico 1 mostra a evolução da taxa de câmbio efetivo real do dólar (poder de compra do dólar frente a principais moedas) desde 1970. É interessante notar que o dólar se apreciou muito entre 1980 e 1984 (50%) e entre 1995 e 2000 (30%). E se depreciou entre 1985 e 1988 (30%) e depois de 2000 (20%). Ou seja, desde o início dos anos 70, o valor de compra do dólar em outras moedas tem flutuado muito. Devido ao home bias das cestas de gasto essa volatilidade tende a aumentar a diversificação das carteiras.
Além da flutuação de longo prazo (três ciclos desde a década de 70), as moedas mostram também elevada volatilidade de curto prazo. O gráfico 2 compara a volatilidade da bolsa e das taxas de câmbio do dólar frente ao yen e o marco alemão em janelas móveis de 180 dias. A bolsa é considerada um ativo de elevada flutuação e, como se vê no gráfico, há períodos em que a volatilidade das taxas de câmbio chega a ser maior.
O dólar perderá valor no longo prazo?
Evidentemente, a pergunta mais importante é se, dessa vez, a queda do dólar será mais forte e duradoura. Essa é uma questão difícil e que depende essencialmente de fundamentos econômicos. Outro artigo da Turim (“A simbiose entre as economias da Ásia e os EUA”), que será publicado na próxima carta, avaliará as condições macroeconômicas dos EUA, sua relação com os países asiáticos e as razões por trás da evolução do dólar.
Quanto aos fundamentos macroeconômicos, a pergunta é se a recente depreciação do dólar aliada à condução das políticas monetária e fiscal nos EUA levará à redução do déficit em conta corrente. Essa é uma possibilidade embora não se possa descartar que o dólar venha a se depreciar mais. Uma dúvida relevante aqui é contra que moedas se daria essa depreciação na medida em que o euro, por exemplo, já sofreu uma apreciação muito forte nos últimos anos enquanto as moedas asiáticas, por exemplo, têm se mexido muito menos.
No que se refere aos fundamentos microeconômicos, a questão é se as empresas americanas manterão nos próximos anos o desempenho (crescimento da produtividade e elevada rentabilidade) característicos das últimas décadas e, especialmente, da década de 90. Esse ponto é importante na medida em que o financiamento do déficit externo dos EUA, bem como a própria taxa de câmbio de longo prazo, dependem do crescimento da produtividade relativa entre os países.
Conclusão
Em linhas gerais, a diversificação das carteiras entre moedas deveria obedecer a dois critérios. Primeiro, a composição (presente e futura) da cesta de gastos do investidor. Segundo, a antecipação por quaisquer motivos de perda de valor relativo do dólar.
No caso da cesta de gastos, o investidor deve projetar a possível diversificação de seu consumo entre bens e serviços produzidos em diferentes partes do mundo. Se a motivação para diversificar a carteira está na diversificação do gasto, o desempenho da carteira não deveria ser avaliado em uma moeda única (dólar, por exemplo), mas em cada moeda separadamente. E nesse caso, a rentabilidade das partes em reais, dólares, euros depende da alocação de ativos em cada moeda (bolsa, renda fixa, hedge funds, etc).
Se o critério de diversificação está associado à expectativa de mudança no valor relativo do dólar, a estratégia de avaliação passa a ser uma questão de alocação de ativos (trading), tanto de curto quanto de longos prazos. Nesse caso, o desempenho da carteira deve ser avaliado em dólares e não separadamente em cada moeda. O objetivo da alocação eficiente é maximizar o valor da carteira em dólar sujeito a um limite de volatilidade e as formas de fazer hedge contra a perda do dólar podem incluir ações de empresas globais, commodities e moedas. Entretanto, é importante levar em conta a elevada volatilidade das moedas que implica elevada volatilidade da própria carteira